domingo, 25 de setembro de 2016

Minorias na Idade Média na Poesia Trovadoresca Galaico-Portuguesa - Parte 2



Homossexuais



No livro Sexo, Desvio e Dano: As Minorias na Idade Média é possível ver informações úteis sobre como a homossexualidade era vista no período medieval, temos então alguns dos aspectos mais importantes: 

"Visto que o sexo, segundo os ensinamentos cristãos, foi dado ao homem unicamente para os propósitos da reprodução e por nenhuma outra razão, qualquer outra forma de atividade que não levasse ou não pudesse levar à procriação era um pecado contra a natureza.(...) O termo “homossexual” era desconhecido na Idade Média. A condição em si mesma não era vista como inata. Era vista como um hábito adquirido. Os termos usados na Idade Média eram sodomia e sodomita. (...) A utilização de acusações de prática desviante para se livrar de inimigos era parte habitual da política medieval, e a sodomia era freqüentemente vinculada à bruxaria e ao culto do Diabo." (RICHARDS, 1993)

Uma cantiga que retrata a homossexualidade é a Cantiga de Escárnio e de Maldizer de Pero Burgalês: 

Don Fernando, pero mi mal digades,
quero-vos eu ora desenganar,
ca ouç'as gentes de vós posfaçar
de cavalgar, de que vos non guardades:
cavalgades pela seest'aquí
e cavalgades de noit'outrossí,
e sospeitan que por mal cavalgades.

Mais rogo-vos ora que mi creades
do que vos ora quero conselhar:
se queredes con as gentes estar,
Don Fernando, melhor ca non estades,
sinher, forçade vosso coraçón
e non cavalguedes tan sen razón,
siquer por vossas bestas, que matades.



"Equívoco sobre um homossexual, jogando com a polissemia do verbo cavalgar. A cantiga será provavelmente dirigida contra o meirinho Fernão Díaz, que aparece igualmente em duas outras cantigas do trovador, e ainda num conjunto alargado de composições de autoria de diversos trovadores e jograis do círculo de Afonso X."

Referências Bibliográficas:

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
<http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1409&pv=sim&p=5>. Acesso em: 25 set, 2016.





Minorias na Idade Média na Poesia Trovadoresca Galaico-Portuguesa - Parte 1


Mulheres 



Na Idade Média o papel da mulher na sociedade era determinado pelos textos bíblicos e crendices. As mulheres na sociedade medieval eram vistas como mero meio de procriação. As mulheres deveriam se casar ou, caso não o fizessem, se  tornarem freiras. Ou ainda se tornarem prostitutas. A sua imagem sempre esteve associada à de Eva e ao Pecado original, sendo vistas como criaturas vis e sedutoras. Contrastando com essa visão, havia a imagem da mulher como maternal, advinda imagem da Virgem Maria. Ela era o canal entre os homens e a salvação. 

A cantiga de amigo "Quisera vosco falar de grado" (Cancioneiro da Biblioteca Nacional 585, Cancioneiro da Vaticana 188) de Dom Dinis, mostra a impotência das mulheres no período e também dialoga com algo que ainda é muito frequente nos tempos atuais. 

Quisera vosco falar de grado, 
aí meu amigu'e meu namorado; 
  mais non ous'hoj'eu convosc'a falar, 
ca hei mui gran medo do irado. 
Irad'haja Deus quen me lhi foi dar! 

En cuidados de mil guisas travo 
por vos dizer o con que m'agravo; 
  mais non ous'hoj'eu convosc'a falar, 
ca hei mui gran medo do mal bravo; 
Mal brav'haja Deus quen me lhi foi dar! 

Gran pesar hei, amigo, sofrudo, 
por vos dizer meu mal ascondudo; 
  mais non ous'hoj'eu convosc'a falar, 
ca hei mui gran medo do sanhudo. 
Sanhud'haja Deus quen me lhi foi dar! 

Senhor do meu coraçón, cativo 
sodes en eu viver con que vivo; 
  mais non ous'hoj'eu convosc'a falar, 
ca hei mui gran medo do esquivo. 
Esquiv'haja Deus quen me lhi foi dar!


"Numa interessante e original cantiga, a donzela diz ao seu amigo que não ousa falar com ele, nem contar-lhe o seu profundo mas secreto sofrimento, porque tem muito medo daquele a quem chama, sucessivamente, o irado, o mal bravo (o selvagem, numa tradução aproximada), o sanhudo e, finalmente, aquele "com quem vive" - ou seja, o seu marido. E amaldiçoa, ao mesmo tempo (no último verso do refrão), "quem me lhi foi dar", por certo o seu pai ou a sua família. 
Sendo esta, pois, uma cantiga de amigo, ela não deixa de constituir igualmente uma denuncia da situação social das mulheres (ou de algumas mulheres) na Idade Média, sujeitas a casamentos forçados e a maridos violentos."


Prostitutas




As prostitutas faziam parte, essencialmente, do mundo urbano na Idade Média. No livro Sexo, Desvio e Danação: As Minorias na Idade Média, há algumas informações sobre a prostituição no período que vale destacar: 

"Provavelmente o maior grupo de clientes servidos pelas prostitutas da Europa medieval era o dos homens jovens e não-casados. Não importa o que a Igreja pudesse dizer sobre sexo, havia uma tolerância social generalizada da atividade sexual masculina pré-marital e extraconjungal no mundo medieval.  Mas a prostituição era vista como um meio prático de permitir que os jovens de todas as classes afirmassem sua masculinidade e aliviassem suas necessidades sexuais, enquanto evitava, ao mesmo tempo, que se aproximassem de esposas e filhas respeitáveis, desestimulando-os dos estupros em gangues e desencorajando-os em relação à homossexualidade.(...)Primeiro, as prostitutas tinham que ser diferenciadas da população decente pela prescrição de uma marca de infâmia, e segundo, elas tinham que ser segregadas." (RICHARDS, 1993)

Na Cantiga "Domingas Eanes" de Afonso X podemos ver a imagem da "soldadeira", palavra que se referia às cortesãs ricas e também às prostitutas pobres, que trava um "duelo" com um cavaleiro.

 “Domingas Eanes ouve sa baralha 
 con uu genet', e foi mal ferida; 
 empero foi ela i tan ardida, 
 que ouve depois a vencer, sen falha, 
 e, de pran, venceu bõo cavaleiro; 
 mais empero, é-x'el tan braceiro, 
 que ouv'end'ela de ficar colpada. 

 O colbe colheu-[a] per ua malha 
 da loriga, que era desvencida; 
 e pesa-m'ende, porque essa ida, 
 de prez que ouve mais, se Deus me valha, 
 venceu ela; mais [log'] o cavaleiro 
 per sas armas o fez: com'er'arteiro, 
 ja sempr' end' ela seerá esmalhada. 

 E aquel mouro trouxe, com' arreite, 
 dous companhões en toda esta guerra; 
 e de mais á preço que nunca erra 
 de dar gran colpe con seu tragazeite;
 e foi-a achaar con costa juso, 
 e deu-lhi poren tal colpe de suso, 
 que já a chaga nunca vai çarrada. 

 E dizen meges: — Quen usa tal preit'e 
 á tal chaga, já mais nunca serra, 
 se con quanta laã á en esta terra 
 a escaentassen, nen cõno azeite; 
 por que a chaga non vai contra juso,
 mais vai en redor, come perafuso,
 e poren muit' á que é fistolada.” 


 "Palavras que normalmente se vinculam ao vocabulário das disputas e campos de batalha remetem aqui à relação sexual e à vida livre das soldadeiras. Desta forma, a baralha (briga, questão) refere-se ambiguamente a um confronto sexual onde a soldadeira se vê "mal ferida" e "colpada" (golpeada). O tragazeite (3ª estrofe), que era uma pequena lança de arremesso usada pelos mouros, remete obviamente ao órgão sexual masculino. O verbo achaar, que literalmente significa "estender ao comprido, no chão", reforça aquele sentido malicioso e se completa logo no mesmo verso, ao mencionar que a soldadeira estava "com costa juso", isto é, de ventre para cima. O "colpe de suso" (golpe de cima), que a vai chagar, arremata o circuito de alusões eróticas. Também os dois companhões (verso 16) — que no vocabulário de guerra significam "companheiros de batalha" — comportam aqui o seu outro sentido de "testículos". São trazidos pelo mouro "con arreite" — que em um sentido significa "ânimo espertado", mas no outro alude a "com o membro viril endireitado" (BARROS, 2005, p.10)

Referências Bibliográficas: 

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
BARROS, J.D.A. A prostituta como agente de circularidade no trovadorismo ibérico (séculos XIII e XIV). Revista Ártemis. v. 2, jul 2005. <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/artemis/article/view/2350/2077>. Acesso em: 25 set, 2016.
<http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=609&pv=sim>. Acesso em: 25 set, 2016.



Literatura de Cordel e Poesia Trovadoresca 




No livro Breve História da Literatura de Cordel é definido que:

" A Literatura de Cordel é a poesia popular, herdeira do romanceiro tradicional, e, em linhas gerais, da literatura oral (em especial dos contos populares), desenvolvida no Nordeste e espalhada por todo o Brasil pelas muitas diásporas sertanejas. Refiro-me, evidentemente, à literatura que reaproveita temas da tradição oral, com raízes no trovadorismo medieval lusitano, continuadora das canções de gesta [conjunto de poemas épicos da literatura francesa], mas, também, espelho social de seu tempo. Com esta última finalidade, receberá o qualitativo - verdadeiro, porém reducionista - de "jornal do povo". O cordelista, como hoje é conhecido o poeta de bancada, é parente do menestrel errante da Idade  Média, que, por sua vez, descende do rapsodo grego." (HAURÉLIO, 2010, p.17)


Da mesma forma que as poesias trovadorescas tinham caráter oral, cantadas em festas e comemorações, a literatura de cordel também, sendo apresentadas em feiras e praças. Para melhor demonstrar a relação entre a poesia trovadoresca galaico-portuguesa e a literatura de cordel, tomemos como exemplo o cordel "casamento do velho", de Leandro Gomes de Barro:

(...) 
Manoel Lopes dos Anjos 
Nunca tinha se casado 
Dizia sempre a mulher
É um volume pesado 
Deus me livre de mulher 
De médico e advogado.
 (...) 
Setenta e cinco janeiros 
Dos Anjos tinha no couro 
Fora cinco que mamou 
Quatro que os levou em choro 
E dez que vendeu azeite 
Para adquirir o ouro. 
Georgina que contava 
Quatorze anos de idade 
Só apaixonava as flores 
As nuvens na imensidade 
Só desejava brinquedos 
E passear sempre à tarde. 
(...) 
Agora note o leitor 
Que foi que a viúva fez 
Depois da morte do velho 
Inda casou-se com três. 
(...)

É possível perceber que o cordel critica os homens velhos que querem se casar com mulheres novas, o caráter irônico e crítico dessa poesia em muito lembra as cantigas de escárnio e as cantigas de mal dizer. 

Para maiores informações sobre a literatura de cordel, disponibilizamos uma reportagem do globo rural:


Referências Bibliográficas:

HAURÉLIO, Marco. Breve história da literatura de cordel. São Paulo: Claridade, 2010. 
ALGERI, Nelvi Malokowsky. A poesia trovadoresca e suas relações com a literatura de cordel e a música contemporânea. <http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/producoes_pde/artigo_nelvi_malokowsky.pdf>.  Acesso em: 25 set. 2016. 

Trovadorismo e Contemporaneidade


Este post e os seguintes abordarão aspectos contemporâneos associados à poesia galaico-portuguesa.


   Comecemos então com a influência da poesia galaico-portuguesa na música popular brasileira (MPB). Para entender esta influência vamos nos orientar pela Teoria da Residualidade Literária, de Roberto Pontes:

"A residualidade se caracteriza por aquilo que resta, isto é, remanesce, de um tempo em outro, podendo significar a presença de atitudes mentais arraigadas no passado próximo, ou distante, dizendo respeito também aos resíduos indicadores de futuro. Estes últimos dizem respeito a artistas que, independente da estética à qual pertençam, incluem nas suas obras uma linguagem precursora, sendo, por isso, considerados artistas avant la lettre. Mas a residualidade não se restringe à categoria tempo, abrangendo igualmente a do espaço, a qual nos possibilita identificar também a hibridação cultural no tocante a crenças e costumes." (PONTES, 1999, p. 27)

   Assim, é possível afirmar que há resíduos, principalmente, das cantigas de amor e das cantigas de amigo na MPB. Artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso têm em suas composições esses traços de forma mais expressiva. 

    A canção "Queixa" (1982) de Caetano Veloso em muito se assemelha às cantigas de amor. A vassalagem amorosa típica desse tipo  de cantiga é perceptível no sofrer do homem pela mulher amada, que está tão distante, tão acima dele. O sofrer por amor, então, mostra-se atemporal. 

Um amor assim delicado 
Você pega e despreza
Não devia ter despertado 
ajoelha e não reza

Dessa coisa que mete medo 
Pela sua grandeza
Não sou o único culpado 
Disso eu tenho a certeza

Princesa, surpresa, você me arrasou
Serpente, nem sente, que me envenenou
Senhora, e agora, me diga onde eu vou
Senhora, serpente, princesa
Um amor assim violento 
Quando torna-se mágoa
É o avesso de um sentimento 
Oceano sem água

Ondas, desejo de vingança 
Dessa desnatureza
Bateu forte sem esperança 
Contra a tua dureza (Refr.)

Um amor assim delicado 
Nenhum homem daria
Talvez tenha sido pecado 
Apostar na alegria

Você pensa que eu tenho tudo 
E vazio me deixa
Mas Deus não quer que eu fique mudo
E eu te grito esta queixa!




A canção "Sob Medida" (1979) de Chico Buarque se assemelha às cantigas de amigo, já que o eu lírico é feminino, mas a composição é feita por um homem e também é cantada por ele.

Se você crê em Deus
Erga as mãos para os céus
E agradeça
Quando me cobiçou
Sem querer acertou
Na cabeça
Eu sou sua alma gêmea
Sou sua fêmea
Seu par, sua irmã
Eu sou seu incesto 
Sou igual a você
Eu nasci pra você
Eu não presto
Eu não presto

Traiçoeira e vulgar
Sou sem nome e sem lar
Sou aquela
Eu sou filha da rua
Eu sou cria da sua
Costela
Sou bandida
Sou solta na vida
E sob medida
Pros carinhos seus
Meu amigo
Se ajeite comigo
E dê graças a Deus

Se você crê em Deus
Encaminhe pros céus
Uma prece
E agraceça ao Senhor
Você tem o amor
Que merece





Referências Bibliográficas:


MERÇON, Marineis. A residualidade literária das cantigas trovadorescas na música popular brasileira: uma análise das músicas de Chico Buarque e Caetano Veloso. Cadernos UNDB, São Luís, v. 4. jan/dez. 2014. < http://www.undb.edu.br/publicacoes/arquivos/14_-_a_residualidade_literaria_das_cantigas_trovadorescas_na_musica_popular_brasileira.pdf>. Acesso em: 25 set. 2016

sábado, 24 de setembro de 2016

Cantiga de Amigo

- Ai flores, ai flores do verde pino (D. Dinis)



Ai flores, ai flores do verde pinho,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do qui mi há jurado?
Ai Deus, e u é?

Vós me perguntardes polo voss'amigo,
e eu bem vos digo que é sã'e vivo.
Ai Deus, e u é?

Vós me perguntardes polo voss'amado,
e eu bem vos digo que é viv'e são.
Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é sã'e vivo
e seera vosc'ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?

E eu bem vos digo que é viv' e são
e seera vosc'ant'o prazo passado
Ai Deus, e u é?

Glossário:
v. 1 ‑ pino: pinheiro.
v. 3 – u é: onde está?
v. 8 ‑ do que pôs comigo: sobre aquilo que combinou comigo.
v. 14 ‑ sano: saudável, são.
v. 20 ‑ seera vosc’ant’o prazo saído: estará convosco antes de terminar o prazo.


Essa é uma das cantigas mais conhecidas de D. Dinis.
Podemos ver que o sujeito poético desta composição é uma jovem que está anciosa e que a Natureza serve como um confidente para a moça. No refrão, é possível ver seu desespero pelo fato de que seu amado ainda não chegou ao lugar marcado, mesmo as flores lhe assegurando de que ele chegará.

  • A voz no vídeo é da cantora galega Helena de Alfonso, e esta canção foi publicada no primeiro disco do grupo Barahunda, em 2002.


Bibliografia:
Vídeo retirado do Youtube <https://www.youtube.com/watch?v=FPJ61GqOfCA> em 24 de set. de 16.
Cantigas Medievais Galego-Portuguesas. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Portugal. Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?cdaut=25&pv=sim> Acesso em: 24 de Set. de 16


As Cantigas de Amigo

São cantigas de origem popular, com marcas evidentes da literatura oral (reiterações, paralelismo, refrão, estribilho), recursos esses próprios dos textos para serem cantados e que propiciam facilidade na memorização. Esses recursos são utilizados, ainda hoje, nas canções populares. 
Este tipo de cantiga, que não surgiu em Provença como as outras, teve suas origens na Península Ibérica. Nela, o eu-lírico é uma mulher (mas o autor era masculino, devido à sociedade feudal e o restrito acesso ao conhecimento da época), que canta seu amor pelo amigo (amigo = namorado), muitas vezes em ambiente natural, e muitas vezes também em diálogo com sua mãe ou suas amigas. 
A figura feminina que as cantigas de amigo desenham é, pois, a da jovem que se inicia no universo do amor, por vezes lamentando a ausência do amado, por vezes cantando a sua alegria pelo próximo encontro. Outra diferença da cantiga de amor, é que nela não há a relação Suserano x Vassalo, ela é uma mulher do povo. Muitas vezes tal cantiga também revelava a tristeza da mulher, pela ida de seu amado à guerra.
No exemplo a seguir, do trovador Juião Bolseiro, o diálogo se estabelece entre a mulher apaixonada e sua filha, que impede a mãe de ver seu amado:

Mal me tragedes, ai filha,
porque quer ‘ aver amigo
e pois eu com vosso medo
non o ei, nen é comigo,
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça. 

Sabedes ca sen amigo
nunca foi molher viçosa,
e, porque mi-o non leixades
ver, mia filha fremosa,
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.

Pois eu non ei meu amigo,
non ei ren do que desejo,
mais, pois que mi por vós v~eo
Mia filha, que o non vejo,
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.

Por vós perdi meu amigo,
por que gran coita padesco,
e, pois que mi-o vós tolhestes
e melhor ca vós paresco
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.

Como salienta Massaud Moisés, analisando essa dualidade amorosa do trovador,"é digna de nota essa ambiguidade, ou essa capacidade de projetar-se na interlocutora do episódio e exprimir-lhe o sentimento: extremamente original como psicologia literária ou das relações humanas, não existia antes do trovadorismo, e nem jamais se repetiu depois".


Bilbliografia:
MOISÉS, Massaud. A literatura portugues através dos textos. 1ª edição. São Paulo: Cultrix, 1968.
Cantigas Medievais Galego-Portuguesas. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Portugal. Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?cdaut=85> Acesso em: 24 de Set. de 16

Cantigas de Afonso X – As Cantigas de Escárnio e Maldizer




Como dito em outra postagem, a produção de cantigas de D. Afonso, também conhecido como Afonso, o Sábio, é majoritariamente de Cantigas de Escárnio e Maldizer. Já apresentamos antes as características apresentadas por cada um dos três gêneros principais de cantigas trovadorescas, mas vale a lembrança a respeito do que são as Cantigas de Escárnio e Maldizer.
Estas são as cantigas satíricas do trovadorismo ou de dizer mal. Dentro da Arte de Trovar, distinguisse duas vertentes: o dizer mal de forma encoberta ou equívoca, chamada então de escárnio, enquanto há também o dizer mal de forma explícita e ostensiva, o qual denomina-se de maldizer. Geralmente as cantigas são consideradas fazendo parte de uma única definição; visto que suas características muitas vezes não são perceptíveis, no próprio texto, para causar a diferenciação e os próprios trovadores costumavam utilizar-se desta definição unificada.
A seguir, algumas Cantigas de Escárnio e Maldizer compostas, separadas por asteriscos (*), por Afonso, o Sábio.


Achei Sanch[a] Anes encavalgada
e dix'eu por ela cousa guisada:
ca nunca vi dona peior talhada,
e quige jurar que era mostea;
e vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.

Vi-a cavalgar com um seu 'scudeiro
e nom ia milhor um cavaleiro.
Santiaguei-m'e disse: - Gram foi o palheiro
onde carregarom tam gram mostea;
vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.

Vi-a cavalgar indo pela rua,
mui bem vistida em cima da mua;
dix'eu: - Ai, velha fududancua,
que me semelhades ora mostea!
Vi-a cavalgar per ũa aldeia
e quige jurar que era mostea.

*
**

Dom Airas, pois me rogades
que vos dia meu conselho,
direi-vo-lo em concelho:
por bem tenh'eu que vaades
mui longe de mi e mui com meu grado.

E por eu [vos] bem conselhar
nom dé-vos com estar peior,
ca vos conselh'eu o milhor:
que vaades ora morar
mui longe de mi e mui com meu grado.

Conselho vos dou d'amigo;
e sei, se o vós fezerdes
e me daquesto creverdes,
morar[e]des u vos digo:
mui longe de mi e mui com meu grado.

*
**

Nom quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

Nom quer'eu donzela fea
e negra come carvom
que ant'a mia porta pea
nem faça come sisom.
Nom quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

Nom quer'eu donzela fea
e velosa come cam
que ant'a mia porta pea
nem faça come alermã.
Nom quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

Nom quer'eu donzela fea
que há brancos os cabelos
que ant'a mia porta pea
nem faça come camelos.
Nom quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

Nom quer'eu donzela fea,
veelha de má[a] coor
que ant'a mia porta pea
nem [me] faça i peior.
Nom quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.



Cantigas Medievais Galego-Portuguesas. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Portugal. Disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp#7 > Acesso em 23 de set. de 16.
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Portugal. Disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=459&pv=sim > Acesso em 23 de set. de 16.
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Portugal. Disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=475&pv=sim> Acesso em 23 de set. de 16.
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Portugal. Disponível em: < http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=479&pv=sim> Acesso em 23 de set. de 16.